26/10/2011

Quando a mentira oprime a nação

in Público, 26/10/2011

Quando a mentira oprime a nação
Santana Castilho *

Ricardo Santos Pinto, do blogue “Aventar”, prestou-nos um serviço cívico: recolheu em vídeo (ver) afirmações e promessas de Pedro Passos Coelho, enquanto candidato a primeiro-ministro. O cotejo desse impressivo documento com as medidas tomadas pelo visado, nos curtos quatro meses de poder, evidencia o colossal logro em que os portugueses caíram. Se em quatro meses a sua acção é pautada por tanto despudor e falta de ética, que sobra à nação para lhe confiar quatro anos de governo?

O orçamento do Estado para 2012 é bem mais bruto que o tratamento “à bruta” que Passos Coelho recriminou a Sócrates, no vídeo em análise. Aí se consagra, com uma violência desumana, o que Passos Coelho disse que nunca faria: confisco de quatro meses de salários aos servidores públicos e reformados; fim de deduções fiscais; aumento de impostos, designadamente do IRS e IVA. Ao embuste ardilosamente tecido em ano e meio de caça ao voto acrescenta-se a falácia com que se justifica o assalto aos que trabalham. Com efeito, muito mais que a invocada má gestão das contas públicas no primeiro semestre, da responsabilidade de Sócrates, pesa a irresponsabilidade da Madeira e o caso de polícia do BPN. Na primeira circunstância, ocultando manhosamente o plano de ajustamento, antes das eleições, Passos Coelho protegeu Jardim e escamoteou quem saldaria o escândalo. Sabemos agora que são os funcionários públicos e os pensionistas. Na segunda, enquanto os responsáveis pelo tenebroso roubo permanecem impunes, os contabilistas que governam venderam o BPN ao desbarato, limpinho das dívidas colossais. O povo vai pagar e pedem-lhe agora que não bufe, por causa dos mercados.

Passos Coelho manipula grosseiramente os factos quando afirma que a média salarial da função pública é 15 por cento superior à dos trabalhadores privados. Ele sabe que a qualificação média dos activos privados é bem mais baixa que a homóloga pública, onde trabalham, entre outros técnicos de formação superior, milhares de médicos, professores, juízes, arquitectos, engenheiros e cientistas. Para que a comparação tenha validade, há que fazê-la entre funções com idênticos requisitos académicos. A demagogia não colhe. Como não colhe o primarismo de dizer que não estendeu o corte dos subsídios aos privados porque o Estado não beneficiaria, mas sim os patrões, que pagam os salários. Esqueceu-se de como fez com o corte deste ano? Ou toma-nos por estúpidos?

O orçamento esconde-se cobardemente atrás da troika para invocar a inevitabilidade das suas malfeitorias. Mas vai muito para além do que ela impõe e expõe a desvergonha da ideologia que o informa: quando revê a Constituição da República por via contabilística; quando poupa, sem escrúpulos, os rendimentos do capital e esquece os titulares das reformas por exercício de cargos públicos, numa ostensiva iniquidade social; quando permite que permaneçam incólumes os milhões que fogem ao fisco; quando compromete, sem réstia de tacto político, a solidariedade entre os cidadãos, pondo os que trabalham no sector privado contra os que trabalham no sector público; quando, atirando o investimento na Educação para o último lugar da União Europeia, ao nível dos indicadores do terceiro mundo, não só não desce o financiamento do ensino privado como o aumenta em nove milhões e 465 mil euros; quando, depois de apertar como nunca o garrote à administração pública, aumenta quase quatro milhões de euros à rubrica por onde pagará pareceres e estudos aos grandes gabinetes de advogados e outros protegidos do regime (Sócrates contentava-se com 97 milhões, Passos subiu para 100,7 milhões); quando, impondo contenção impiedosa nas áreas sociais, inscreve 13 milhões e meio para despesas de representação dos titulares políticos; quando, numa palavra e apesar do slogan do “Estado gordo”, apenas emagreceu salários e prestações sociais, borrifando-se nas pessoas e no país e substituindo o critério do bem comum pelo critério do bem de alguns.

Incapaz de ajudar o país a crescer, Passos tomou a China por modelo e acreditou que sairemos da fossa com uma economia repressiva e de salários miseráveis. Refém que está e servidor que é de grupos económicos e interesses particulares, Passos Coelho perdeu com este orçamento a oportunidade de resgatar o Estado. Ministério a ministério, não se divisa qualquer programa político redentor. Não existem políticas sectoriais. Se Passos regressasse à protecção de Ângelo Correia, Álvaro a Vancouver e Crato ao Tagus Park, Gaspar, só, geria a trapalhada que tem sido tecida de fininho. Recordemo-la. Em Maio passado, o memorando de entendimento que o PS, PSD e CDS assinaram com a troika consignava para 2012 cerca 4.500 milhões de euros de redução da despesa e cerca 1.500 de aumento da receita (leia-se impostos). Apenas três meses volvidos, o documento de estratégia orçamental do Governo para o período de 2011 a 2015 já aumentava os números de 2012: a redução da despesa pública crescia quase 600 milhões e as receitas a cobrar aumentavam quase 1.200, pouco faltando para a duplicação do número antes considerado. Foi obra, em três meses. A meio de Outubro, novo documento oficial reiterava os números anteriores. Mas eis senão quando, escassos dias volvidos, surge o orçamento, que passa a redução da despesa, em 2012, para quase 7.500 milhões e fixa o aumento de impostos em cerca de 2.900 milhões. Diferenças colossais em documentos oficiais, com quatro dias de premeio, merecem a confiança dos contribuintes? Com a classe média a caminho da pobreza e os pobres a ficarem miseráveis, a esperança morreu. Definitivamente. Bastaram quatro meses. Esperemos que o país acorde e se mobilize.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

20/10/2011

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por Santana Castilho

Qualquer programa de austeridade exige, para ser credível e aceite pelos que o sofrem, que seja desenvolvido sobre uma clara estratégia de gestão e uma sólida equidade social. O Orçamento de Estado para 2012 é um simples exercício contabilístico, a que falta uma e outra coisa. Do que contém, não se retira uma ténue ideia de crescimento económico. Sem isso, o ponto de chegada será o desastre. A incógnita é prevermos o tempo em que o teremos declarado.

No Governo, temos hoje um directório de contabilistas sem rasgo. Crato ocupa lugar de destaque. O que vai dizendo sobre Educação, ora pela vacuidade ora pelo disparate das afirmações, reconduz-me às memoráveis tiradas de Américo Tomás. Um objectivo para 2012 (pág. 197 do Relatório OE 2012) é reforçar a aposta no ensino profissionalizante dos jovens que frequentam o ensino básico. Por este andar ainda vou ver bancadas de torneiro mecânico nos jardins-de-infância. 

Supor-se-ia que os quadros de síntese do OE para 2012 (veja-se, por exemplo, o Quadro III.3.17. Despesa do Estado – Classificação Funcional, donde se retira uma quebra de 1.550,5 M€ no sector) estariam fundamentados num conjunto de medidas já descritas e quantificadas pelos responsáveis pelas políticas sectoriais. Mas não é isso que acontece. O contabilista- mor, Gaspar, disse ao guarda-livros, Crato, quanto tinha na taleiga. E este irá agora dar, com a incompetência já patenteada, o respectivo contributo para a hecatombe do futuro, atirando moedas ao ar. Fala-se por aí que reduzirá os tempos lectivos da História e da Educação Física. Que suprirá a segunda língua estrangeira. Que fará uma caldeirada entre a História e a Geografia. Que acabará com o par pedagógico da EVT. Em rigor, veio para escaqueirar o que faltava. Tanto dá por onde continuará o trabalho de Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada. 

in Diário Económico

12/10/2011

O grau zero da decência e a excelência do cinismo

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in Público, 12/10/2011

O grau zero da decência e a excelência do cinismo

Santana Castilho *

Os argumentos que sustentam a revogação dos prémios de mérito dos alunos ilustram a excelência do cinismo. Comecemos pela incoerência. Nuno Crato foi um arauto da meritocracia, da superioridade dos resultados, da competição e do reconhecimento dos melhores. É verdade que nunca se ocupou a reflectir sobre o que é ser melhor em Educação, nem perdeu tempo a clarificar “as poucas ideias” (a expressão é dele próprio) que tem sobre ela. Mas apontou o “eduquês”, sempre, como a antítese daqueles paradigmas doutrinários. Ora os prémios que estoiraram eram o melhor símbolo da meritocracia e da oposição ao “eduquês”. Nuno Crato implodiu, portanto, a sua coerência. Vejamos agora a forma e a legalidade dúbia. O despacho está escrito em fino “eduquês”, redondo, cheio de frases reles, que Crato ridicularizou quando não era ministro. Cita mal e descuidadamente legislação de suporte. E rebenta, sem poder, com o que se consigna no Código Civil. Com efeito, a instituição dos prémios reveste a forma jurídica de “promessa pública”, cujo sentido é, assim, clarificado pelo nº1 do artigo 459º do citado código”: “Aquele que, mediante anúncio público, prometer uma prestação a quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou negativo, fica vinculado desde logo à promessa”. Esta promessa pública, se não tiver prazo de validade, o que é o caso, é revogável a todo o tempo (nº 1 do artigo 461º). Mas a revogação não é eficaz (nº2 do artigo 462) “… se a situação prevista já se tiver verificado …”. E este é o caso. Quando o ministro revogou, já os factos que obrigavam ao cumprimento do prometido se tinham verificado, isto é, estavam apurados, há muito, os alunos referidos na promessa. Crato podia revogar para futuro. Mas não podia deixar de cumprir o que estava vencido, fazendo uma interpretação torta do Direito. E chegamos ao mais importante, à ética e à moral. Que acontece à ética quando se retiram, na véspera de serem recebidos, os prémios que se prometeram aos alunos? Que ética permite que a solidariedade seja imposta por decreto e assente na espoliação? Que imagem da justiça e do rigor retirarão os alunos, os melhores e os seus colegas, do comportamento abjecto de que os primeiros foram vitimas? Terão ou não sobeja razão para não acreditarem nos que governam e para lamentarem a confiança que dispensaram aos professores que, durante 12 anos, lhes ensinaram que a primeira obrigação das pessoas sérias é honrar os compromissos assumidos? Por fim, o despacho ordinário do ministro impõe a pergunta fatal: que moral o informa para, responsável por tal infâmia, quando confrontado com ela, apenas reconhecer uma falha de comunicação, por a decisão ter sido tomada a 19 de Setembro? Fora o primeiro-ministro além da contabilidade e Crato teria imediatamente ficado a saber, pela única via reparadora, que a emergência que vivemos não suspende a legalidade, a coerência e a ética, nem o dispensa da moral mínima. Já sabíamos que Crato queria endireitar a Educação medindo e classificando tudo e todos. Não sabíamos que pretendia formar o carácter dos alunos enganando-os e obrigando-os a serem solidários à força. Esclareceu-nos agora. Eficazmente. Sem deslizes de comunicação.

A aceitação de qualquer meio para chegar ao fim, baixo modo de fazer política, marca também a relação com os professores. Não é edificante que a trapalhada dos concursos esteja agora no Departamento de Investigação e Acção Penal. Nunca antes se tinha chegado a tal extremo. Independentemente do que de lá saia, há factos indesmentíveis. O processo usado para contratar professores é uma charada sem réstia de transparência e uma porta aberta às manipulações e aos golpes. Num dos momentos do concurso, designado por “Bolsa 2”, entre 15 e 19 de Setembro, quando as escolas quiseram manifestar horários anuais, a respectiva plataforma informática bloqueava essa opção e assumia-os como temporários. Foi o glorioso tempo dos professores ao mês, apressadamente corrigido a seguir. Dizer que os professores foram colocados em função do que constava na aplicação informática é, neste contexto, vil, demasiado baixo. Quando confrontado com os factos no Parlamento, Nuno Crato foi simplesmente demagógico. Falou de não poder contratar para além das necessidades. Ora ninguém lhe pediu que contratasse para lá das necessidades. Pediu-se-lhe que explicasse por que contrataram arbitrariamente. Por que manipularam horários. Por que permitiram que quem estava antes fosse ultrapassado por quem vinha depois. Com um vistoso jogo de cintura, para aligeirar o escândalo e as televisões servirem, Crato afirmou que apenas 0,4 (“Bolsa 1) e 0,1 (“Bolsa 2”) por cento dos professores reclamaram. O distinto matemático esqueceu-se de nos dizer a que universo se referia a percentagem. Mas só um é relevante: o dos cerca de 37.000 professores desempregados. Dado que os recursos foram 512 para a “Bolsa 1” e 152 para a “Bolsa 2”, as percentagens verdadeiras são 1,38 e 0,41 por cento, respectivamente, sem atender a que o universo do cálculo se reduziu entre os dois momentos considerados. Acresce, e não é de somenos, que quem queira reclamar se tem que sujeitar a um “conveniente” mecanismo de “consulta prévia” informática, prolixo, castrador, perito em brindar os irreverentes com a canalha mensagem: “O seu perfil de utilizador não lhe permite executar a operação pretendida”. 

O grau zero da decência a que o Ministro da Educação e Ciência desceu tem uma vantagem: daqui para a frente, por mais repugnantes que sejam as suas decisões, estaremos preparados. Nada surpreenderá as pessoas de bem. 


* Professor do ensino superior. (s.castilho@netcabo.pt)