28/03/2012

Crato, o prepotente de falas mansas

no jornal Público de 28 de Março, 2012

por Santana Castilho *

No congresso do PSD, Passos Coelho afastou-se do partido e falou ao país. Mas não disse, sobre o futuro, coisa alguma que valesse o sacrifício de seguir aquele enorme bocejo. Cá fora houve sinais bem mais eloquentes sobre o que está para vir. Um “pitbull”, vestido com uma farda da polícia, zurziu uma repórter perigosamente armada com uma máquina fotográfica. O Governo, qual comité de censores, proibiu os responsáveis das empresas de transportes de informarem o público sobre os efeitos da última greve geral, espezinhando o direito de sermos esclarecidos pelo Estado sobre um aspecto relevante da vida colectiva e tornando ainda mais difícil, para todos os que não têm carro, a ida para o trabalho e o regresso a casa. E o ministro da Educação mostrou-se, uma vez mais, um prepotente de falas mansas. Duro o qualificativo? Apropriado para quem obriga crianças com necessidades educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em circunstâncias que não respeitam o seu perfil de funcionalidade. Com o cinismo cauteloso de as retirar depois do tratamento estatístico dos resultados. De prepotência se tratou quando, em início de mandato, revogou os prémios de mérito dos alunos, sem aviso prévio e atempado, quando eles já tinham cumprido a sua parte. De prepotência voltou a tratar-se quando, dias antes das inscrições nos exames do 12º ano, as regras foram unilateralmente mudadas, ferindo de morte a confiança que qualquer estudante devia ter no Estado. E de novo voltámos à prepotência quando, por mais acertada que fosse a mudança, ela ocorreu a mais de meio do ano-lectivo (condições de acesso ao ensino superior por parte de alunos do ensino recorrente). 

É esta a liberdade que Passos Coelho invocou repetidas vezes no congresso do PSD?

Passos Coelho, que me tenha dado conta, não fez qualquer alusão específica à Educação. Em tempo de balanço e prestação de contas, como lhe chamou, é significativo. Nem sequer, quando se regozijou com o cumprimento do memorando celebrado com a “troika”, julgou necessário reconhecer que, em matéria de Educação, quase tudo está por fazer. Recordemos, em síntese, as medidas a que a “troika” nos obrigava e vejamos o que foi cumprido:

- Melhorar a qualidade do ensino profissional, através de um plano de acção a desenvolver. Não há plano algum e nada foi feito. Continuamos, salvo raras excepções, com um ensino profissional de papel e lápis, que tudo aceita para manter na escola quem, de outro modo, a abandonaria. Uma vergonha, muito cara, para quem apregoa resultados, exigência e rigor.

- Melhorar a eficiência do sistema. A inimaginável burocracia com que Maria de Lurdes Rodrigues vergou os professores está incólume. Continua a chusma de reuniões caricatas, que para nada servem. Persistem siglas, planos e projectos estéreis. Agruparam escolas e agora agrupam agrupamentos. Cortaram cabeças pensantes e enxertaram no seu lugar regulamentos castrantes. Os resistentes são raros. Esta cultura instalou-se. Os professores “funcionam” cada vez mais e ensinam cada vez menos. Tornaram apáticos os professores, intranquilos os alunos e resignados todos, pais também. Balcanizaram, espalharam a descrença e o desânimo. Este “sistema” não é, certamente, o sistema cuja eficiência a “troika” queria que fosse melhorada.

- Diminuir o abandono escolar. É cedo para vermos, objectivamente, como este indicador se comportou sob tutela de novos senhores. Mas não é difícil prever que vai piorar, num contexto de tremenda crise de recursos das famílias, de fome nas escolas e de prolongamento insensato da duração da escolaridade obrigatória. Outra meta que não será cumprida.

- Consagração da autonomia das escolas. Uma falácia recorrente. Enxertos sucessivos na má qualidade dos normativos principais, que mudam aqui e ali para que tudo fique na mesma. Novo? O caciquismo local, mais atrofiante que o central e que a ele se soma. Novo? A barbaridade dos agrupamentos, que varreram de vez o conceito de Escola. Novo? Liberdade aos directores (que não à Escola) para escolherem a duração dos tempos lectivos. 

- Reforçar o papel da Inspecção-Geral da Educação. Não há. É só. Há uma inspecção de processos administrativos. Há uma medíocre máquina punitiva que, mesmo assim, engonha quando os caciques entram em cena. Sei do que falo e tenho documentos. O meu endereço vai ao fundo da página, Senhor Inspector-Geral. 

- Economizar 195 milhões de euros em 2012 e 175 em 2013, racionalizando a rede de escolas, diminuindo a contratação de recursos humanos e reduzindo as transferências para as escolas privadas. Finalmente, objectivo cumprido, por mais do que o pedido, com antecipação de prazos e uma só pequeníssima excepção: as transferências para o privado cresceram em vez de diminuírem. 


* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

14/03/2012

A paz dos anestesiados

Santana Castilho
Público, 14/3/12

À paz dos cemitérios que reina na Educação serve bem a paz dos anestesiados que domina os professores. Dois acontecimentos permitem glosar o tema e extrapolá-lo para a situação do país. Refiro-me à alteração do normativo que regula o concurso dos professores e à situação da Parque Escolar. Comecemos pelo primeiro caso. Nuno Crato exultou com o acordo a que chegou com seis sindicatos. Os sindicalistas orgulharam-se com as alterações que conseguiram entre a primeira proposta do ministério e o texto final. De comum têm serem parceiros de uma comédia de disfarces e de um jogo de ilusões. Ouvi-los reconduz-nos às longas noites eleitorais, em que todos ganham. Crato não resolveu um único problema dos que se arrastam há décadas. Dirigentes de sindicatos, onde há mais chefes que índios, esqueceram-se que o exercício não era comparar a primeira proposta do ministério com o texto final. Seria comparar a lei vigente com a que vai ser aprovada. Se o tivessem feito, não assinariam. Pela simples razão que, salvo um ou outro detalhe menor, os professores perdem em todos os pontos do acordo. Particularizo com os dois exemplos mais relevantes, que uma análise total não cabe no espaço exíguo desta crónica:

1. Há 37 anos que não se resolve o óbvio: a qualidade do desempenho dos professores depende, antes de mais, da existência em cada escola de um corpo docente estável. Já houve tempo em que esse desiderato custava dinheiro. Hoje conseguia-se a custo zero. É inaceitável que Crato chame justo a um diploma donde está ausente qualquer sinal de vinculação de docentes. É incompreensível que alguns sindicatos cantem vitória perante um acordo que aumenta a precariedade dos seus filiados, por poucos que sejam. Se os contabilistas de serviço quiserem que prove o que afirmo, é só escolherem o local, dia e hora.

2. É imoral que o ministro fale de equidade ao permitir que docentes do ensino privado concorram na primeira prioridade. O que fez foi beneficiar os empresários dos colégios privados, a braços com a retracção de alunos. O reajustamento no ensino privado será feito à custa dos professores contratados do ensino público: enquanto os colégios privados se vêem livres dos excedentes com mais tempo de serviço e por isso mais caros, milhares de docentes contratados do ensino público serão para sempre ultrapassados pelos colegas do privado. Equidade seria integrar nos quadros os docentes do público, precários há anos, como, aliás, PSD e CDS defendiam quando eram oposição e como acontece no ensino privado, por imposição do Estado.

O diploma em apreço é uma confusa teia de mais de 50 artigos, com que concordam burocratas deslumbrados. O que os separa da naftalina dos mais retrógrados é só o cheiro. De um lado, sindicatos com interesses particulares e bem diferentes, sendo que a maioria não tem representatividade. Do outro, um ministro de ego afectado pela elefantíase mediática, que vive da benevolência dos comentadores políticos e da exploração oportunística da fragilidade alheia. Numa situação de penúria orçamental como a presente, com uma revisão curricular que mais não pretendeu que reduzir custos e diminuir a contratação de professores, este epílogo não surpreende. É, tão-só, mais uma concertação social enganosa, com um chorrilho de razões sem nenhuma razão. 

Passemos à Parque Escolar. Em tempos que já esqueceu, Passos Coelho incomodou muitos políticos, Cavaco Silva incluído, ao defender a necessidade de responsabilizar os políticos civil e criminalmente. Até Louçã falou do facto como mera fantasia. Todos se esqueceram que Passos Coelho apenas clamava pela aplicação da velha Lei 34, de 1987, sucessivamente alterada em 2001, 2008 e 2010 pelas leis 108, 30 e 41, respectivamente. Passos Coelho, prudentemente, esqueceu-se desse tempo. No programa eleitoral, que a seu pedido escrevi e ele aceitou, primeiro, para renegar, depois, estava sumariada a história da Parque Escolar e traçado o seu futuro. Para quem o tenha lido, mais o que nesta coluna assinei sobre a Parque Escolar, em 26 de Fevereiro de 2007 (sim, 2007), primeiro, e em 17 de Fevereiro de 2010, depois, as conclusões do relatório que veio a público são meras redundâncias. O que é novo é que este Governo pactuou oito meses com o esquema. O que agora diz da Parque Escolar, diz dele próprio. Porque a Parque Escolar é uma empresa com um só dono, o Estado. 

Estarão os portugueses anestesiados como os professores? Há para já uma consciência colectiva sobre a gravidade do estado de emergência financeira que o país vive, que dilata generosamente o limite do tolerável. Mas os sinais crescentes de substituição da política pela “pulhítica” poderão precipitar o despertar. A reforma administrativa, o poço sem fundo do BPN, as “adaptações” da TAP e da CGD, a fé para combater a seca, o QREN, as intocáveis parcerias público-privadas e a “vendetta” do presidente são apenas sinais de que, de súbito, pode aumentar a curiosidade pública sobre o que se passa na Islândia.

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comentário de Octávio Gonçalves, retirado daqui:

Mais uma brilhante crónica de Santana Castilho, da qual destaco:
- a forma como arrasa e desafia os sindicatos e o MEC, a propósito do acordo sobre os normativos que regulam os concursos de professores;
- o tempo e os gastos sumptuários que se poderiam ter poupado se, num país avesso a quem tem a razão e o conhecimento do seu lado, alguém tivesse tido a coragem e a inteligência para ouvir Santana Castilho;
- a constatação do incompreensível conformismo e da apatia em que vegetam os professores, indiferentes a legislações farsantes e lesivas dos seus direitos, a discriminações e a imposições iníquas de sacrifícios de que muitos outros se vão excetuando.
A forma como a realidade vem confirmando as análises e as conceções de Santana Castilho, de que a Parque Escolar é apenas o caso mais recente (espanta a surpresa sonsa e ignorante de jornalistas e comentadores que enxergam agora o que Santana Castilho viu em 2007), fazem dele o analista mais lúcido, informado, independente e premonitório do universo mediático português.


13/03/2012

Ministério da Educação, Real Estate

A crónica é antiga de 5 anos, e no entanto, de uma actualidade e pertinência infinitamente superiores a tudo o que se está, agora, a escrever sobre a Parque Escolar.
E não paro de perguntar-me: porquê o 'branqueamento' sistemático de Santana Castilho? Porquê este ignorar-lhe a investigação, os estudos, as crónicas publicadas, por omissão, a própria existência?
Pergunto-me, e sei a resposta: somos uma 'cambada', um país de borra-botas e bem-sucedidos vendedores da banha da cobra. Um país em que o caminho directo para a 'visibilidade mediática', nomeada e principalmente nas televisões, se 'conquista', quer pela torpeza mais torpe, quer pela ignorância e a veleidade das opiniões da treta. Os sacro-santos comentadores residentes! Os analistas de coisa nenhuma! O mainstream e o status quo!
Santana Castilho desencaixa deste mosaico amacacado de opacidade e maneirismos, vacuidade e fogos fátuos, desonestidade e mediocridade de toda a espécie, sobretudo intelectual.
Aos 'patrões' dos media não interessa informar com verdade e com rigor. Ao contrário, tudo fazem para manter o circo em funções, massificar a estupidez, a cretinice, a ignorância. Em prol da aniquilação total do sentido crítico e pela instauração do desábito do 'pensar', Santana Castilho tem de ser ignorado, abafado, escondido, as suas opiniões fechadas a sete chaves.
Santana Castilho incomoda que se farta. Primeiro que tudo, porque tem razão. Depois, porque leva anos-luz de avanço relativamente aos seus não-pares. Sobretudo, porque é lúcido, inteligente, honesto, assertivo, rigoroso, perigosamente informado. Um verdadeiro 'terrorista', e por isso e pela parte que me toca, um imenso BEM-HAJA!

Ministério da Educação, Real Estate
26.02.2007, Santana Castilho
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Depressa poderemos dispensar todo o Estado, poupando-o à maçada de se ocupar da diplomacia, da defesa e da justiça
O Governo e o Partido Socialista, melhor dizendo, José Sócrates, porque uma e outra instituição não existem senão como instrumentos de legitimação do absolutismo do primeiro-ministro, entendeu que as políticas de gestão do parque escolar público devem transitar para o domínio empresarial. Vejamos o que se retira do regime jurídico da nova entidade pública empresarial, "Parque Escolar, EPE", publicado no Diário da República de 21 de Fevereiro de 2007:
1. A retórica que justifica o diploma é conhecida. Retoma os dogmas do liberalismo para impor que o público é diabólico e o privado angélico. Infelizmente, a realidade não muda com as fixações obsessivas de Sócrates. O problema não é o de ser público ou privado, mas o de ser bem ou mal gerido.
2. Este diploma é nojentamente hipócrita: num contexto de redução de organismos e funcionários públicos, cria uma empresa para fazer as mesmíssimas coisas; reconhece a ineficácia de processos mas não tem coragem para os reformar; torneia-os, criando novas estruturas para escapar ao que o discurso politicamente correcto continuará a defender. Dois exemplos: a) a nova entidade pode vender, comprar e contratar por ajuste directo. Se os concursos públicos são empecilhos, deixem de os invocar como instrumento de transparência e boa gestão. b) A nova entidade é agora dona e senhora de sete escolas secundárias localizadas em zonas nobres de Lisboa e Porto. São milhares de metros quadrados urbanizados, consignados a uma empresa pública que deve, e cito do diploma, "... conceber, desenvolver e gerir unidades de negócio destinadas a potenciar receitas de exploração das escolas secundárias ..." e que "... pode, acessoriamente, exercer quaisquer actividades, complementares ou subsidiárias do seu objecto principal, bem como explorar outros ramos de actividade comercial ou industrial...". O mesmo governo que apregoa a autonomia das escolas retira aos seus gestores qualquer direito sobre um dos instrumentos de gestão mais básicos, o espaço físico. Não será uma aberração? O que é isto de "potenciar receitas de exploração das escolas"? Não é legítimo pensar que grandes negociatas estão para vir? Foram os quartéis, poderão ser as escolas.
3. Contrariamente ao que passou para a opinião pública, a nova entidade não se vai ocupar apenas das escolas secundárias. A sua acção pode estender-se a todas actualmente sob tutela do Ministério da Educação.
4. Esta novel empresa pública é bem mais que uma simples empresa. Tem poderes para expropriar, embargar, cobrar taxas e decretar demolições. Cruzem-se estes poderes extraordinários com o que acima se transcreveu e imagine-se o que aí pode vir. Preparem-se as clientelas: podem ser instaladas delegações em qualquer ponto do país, as admissões escapam a qualquer congelamento e os salários dos trabalhadores são de fixação livre. Os membros do conselho de administração têm o estatuto de gestores públicos, o que lhes garante as indemnizações da ordem.

Ora aqui está um modelo reproduzível. Podem criar uma empresa pública para cobrar os impostos e resolver o problema do salário do dr. Macedo. Outra para fechar as urgências, até o Grupo Espírito Santo ter os hospitais por conta. Depressa poderemos dispensar todo o Estado, poupando-o à maçada de se ocupar da diplomacia, da defesa e da justiça. Um só chega para responder pela desresponsabilização em curso: Sócrates, ele próprio, o Único.
Professor do ensino superior

in Público de 26.02.07