01/08/2012

O tirano

Santana Castilho numa crónica FANTÁSTICA, daquelas que gostaria de ter escrito eu. Nuno Crato (como, de resto, mais que merece!) apanha aqui forte e feio. Não dos professores, que são quem o devia "esganar".  Santana Castilho, de novo e sempre, defendendo a classe docente e a escola pública, os olhos bem abertos e os sentidos alerta, a inteligência e a capacidade combativa ao serviço de quem talvez o não mereça, arauto entre surdos e cegos, quase todos. Pela minha parte, o meu imenso obrigada, Professor!
AL




in Público, 1 de Agosto de 2012, mais uma crónica fantástica de

Santana Castilho *

O tirano


Para quem se tenha esquecido, recordo que o concurso nacional de professores já foi um processo administrativo estabilizado e que não provocava conflitos. Políticas incompetentes e recentes inovações sem sentido, de vários donos, encarregaram-se, porém, de recuperar desastres de tempos idos. Mas a taça leva-a Nuno Crato, o tirano. Tanta ignorância, técnica e política, tamanha crueldade moral exercida sobre os docentes, surpreendem os mais treinados. Ontem, terminou o prazo para os novos escravos concorrerem. Terão sido mais de 40 mil, que aguentaram horas e horas de atalaia a uma aplicação informática que lhes fazia continuadamente o que os professores, desunidos, já deviam ter feito ao tirano: um continuado manguito. Servidor em baixo no fim de cada tempo infindo a meter códigos de fazer inveja a Sísifo e babar Kafka, foi a regra. Aceder à coisa, depois de horas de martírio, foi uma lotaria. Até a lei o tirano mudou, depois do concurso começado. Abriu com uma e terminou com outra, sem que o arbítrio tenha provocado mais que incómodos suportados. O que se passa com uma classe inteira, que assim é espezinhada e não consegue pôr cobro a tamanha sucessão de nunca vistos, resta campo para investigação futura. 

Primeiro, sem que se conhecessem os créditos atribuídos às escolas, sem que as matrículas estivessem terminadas e as turmas constituídas, o tirano obrigou os directores das “unidades orgânicas” (escola é vocábulo em vias de proscrição) a determinarem e comunicarem o número de “horários zero” para 2012-2013, sob ameaça de procedimento disciplinar. Milhares e milhares de descartáveis docentes, com dezenas de anos de serviço público desalmadamente ignorado, fizeram fila para o concurso crematório da dignidade mínima. Kapos, de reacção capada pela servidão a que o poleiro obriga, e classe inteira vergada pelo medo e desorientada pela surpresa, obedeceram. Foi a uma sexta-feira, simbolicamente 13. Mas na semana seguinte, qual Nero arrependido, o tirano mandou recuperar o que antes havia incendiado, ordenando a indicação mínima possível de horários zero e permitindo tudo o que antes proibira. Dos números, disse que não estavam “consolidados” e guardou-os na mesma gaveta onde há muito arrumou o rigor de outrora.

A dança macabra foi temporariamente (sublinho temporariamente) adoçada com um empreendedorismo inventivo de recurso: “apoios” de todo o tipo, “coadjuvações” de várias estirpes, combate ao insucesso, patati-patatá, rebéu-béu, pisca-pisca, “cratês” onde havia “eduquês”. Não o tratem que ele vos tratará, orçamento de 2013 a obrigar, volta ao texto do Tribunal Constitucional a justificar, Portas a satisfazer. Ou julgam que o tirocínio na Comissão Permanente do Conselho Nacional da UDP não foi útil? Qualquer tirano sabe que, vendido o inferno ardente, o purgatório passa por paraíso. 

Por que invoco aqui Portas? Porque é dele esta recente frase assassina, que Crato subscreverá com entusiasmo: «Temos de saber e entender que, se o problema de Portugal é défice do Estado, não é justo pretender que o sector privado tenha a mesma responsabilidade de ajudar.» Professores e demais funcionários públicos têm que fazer engolir a ambos a hipocrisia do argumento. Porque o que se gasta com hospitais, escolas, tribunais e tudo o que é público serve a todos, independentemente do sector em que trabalham; porque os 8 mil milhões que se sublimaram sem rasto na canalhice do BPN foram pagos por todos, embora, esses sim, só dissessem respeito a privados, pouquíssimos privados.

Teremos para o ano professores imersos em trabalho, com uma dúzia de turmas a seu cargo, coexistindo com colegas com uma só turma e resto do horário preenchido por “apoios”. As interpretações locais, casuísticas, do que dizem as normas sem norma sobre o que é lectivo e não lectivo, ampliarão a confusão e a nova injustiça, que se soma a tantas outras acumuladas em passado recente. 

Nenhuma circunstância permite a um político maltratar pessoas. Mas Nuno Crato ofendeu a dignidade profissional de milhares de professores. Fez sofrer inutilmente as suas famílias. Ultrajou o trabalho dos que preparavam o ano-lectivo. Tratou grosseiramente o interesse da escola pública, dos pais e das crianças. As duas últimas semanas foram devastadoras e trouxeram-nos uma prática governativa mais perversa e iníqua que a pior do pior tempo de Maria de Lurdes Rodrigues. 

A seriedade intelectual de Nuno Crato em matéria de Educação implodiu definitivamente. Falo da seriedade transmitida nas intervenções públicas que precederam a corrida ao cargo e da seriedade apreendida por quem se deixou enganar pelo seu discurso farsola. Não falo de seriedade intelectual intrínseca, que, essa, nunca existiu. Demonstra-o a curta história do seu ministério.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)


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comentários retirados daqui :

Maria Elvira Lemos Só quem sabe o que se está a passar na Educação é que pode ser tão claro como o sr. Professor nesta crónica tão esclarecedora! Mas o pior ainda está para vir. Aquilo que ele está a fazer aos professsores, deixou-os sem forças para iniciar o novo ano lectivo que já vai começar daqui a umas semanas. A Educação não é o plano inclinado D. Nuno Crato I - o Impostor!
 
Cesar Galocha Face à situação criada pelo MEC, estou cada vez mais crente que o Crato, o tirano, está a ser vítima da instituição que prometeu implodir. Tenho pena. De facto tudo aponta para que a máquina administrativa do seu Ministério tenha ido para além da troika ou triunvirato, como também gosto de designar aqueles tristes fatos que deambulam na fúnebre casa do velório desta III República, e, propositadamente, se tenha virado o feitiço contra o feiticeiro, colocando-o num caldeirão infernal em lume brando. Posso? Talvez se lixe!
 
Luís Sérgio Rolão Mendes Parabéns , professor ! Mais uma excelente e dolorosa crónica, excelente porque sábia , lúcida e verdadeira. Dolorosa porque os professores, na sua grande maioria tardam em perceber que estão a se rliquidados com a escola pública.“Nuno Crato, o tirano. Tanta ignorância, técnica e política”. É verdade, com o objectivo declarado de destruir o concurso de professores.
Grande abraço solidário.
 
Albertina Vieira Tem lógica "unidade orgânica" em vez de escola, tem a lógica do "democrapitalismo" que com passinhos de lã (re)tomou conta de tudo outra vez. Orgânica, porque se decompõe, se desfaz, e é isso que pretendem...
 
Luís Teixeira parabéns por mais um crónica de grande qualidade.
 
Rui Andrade Obrigado Professor.
 
Berta Prata Fico tão triste com estas verdades! Obrigada, Professor, por estas palavras duras e merecidas a todos os intervenientes. Em Setembro, espero que os coegas estejam fortes para a luta que se avizinha. É sempre hora para agir! Nuno Crato foi longe demais, ofendendo profundamente e cobardemente a classe docente.
 
Maria Antónia Pinto li e discuti com um colega ex-professor e ambos estamos de acordo que é um artigo de grande frontalidade e rigor. (...)
 
Nuno Costa Obrigado. Haja alguém com lucidez no apoio à Educação.
 
Fernando Machado Mais uma excelente crónica!!!
 
Mário Jorge Como sempre; mais uma crónica clara e esclarecedora. Parabéns, Sr. PROFESSOR.
 
Ana Maria Rico Bem-haja, professor!
“Novos escravos”, sem dúvida, escravos de uma política governamental sem precedência e de diretores aplicados em ser o jugo da tirania e da subserviência.
 
Sonia Andrade Como seria fantástico se os "tiranos" que estão e que já passaram pelo (des)governo da pasta da Educação tivessem a lucidez e sensibilidade que o Professor demonstra ter, perante o que é a Escola Pública. Muito obrigada por mais uma excelente crónica!!!
 
Manuel Santos Parabéns pela crónica. A linguagem seria dura em pessoas normais, não nesta personagem execrável que destrói a educação e, por arrastamento, o País. É, sem margem para erro, o mais tirânico e autocrata dos membros do governo. O Gaspar tem mais poder mas não lhe chega aos calcanhares (e falo de outro tirano!).
 

1 comentário:

AL disse...

transcrevo para aqui um comentário à nota de SC no FB(crónica "O tirano"):

Luís Sérgio RolãoMendes https://www.facebook.com/luis.s.mendes

Parabéns , professor ! Mais uma excelente e dolorosa crónica, excelente porque sábia , lúcida e verdadeira. Dolorosa porque os professores, na sua grande maioria tardam em perceber que estão a ser liquidados com a escola pública.“Nuno Crato, o tirano. Tanta ignorância, técnica e política”. É verdade, com o objectivo declarado de destruir o concurso de professores.

Grande abraço solidário.