24/08/2016

Conheci o PS antes de ser virgem

no Público
24 de Agosto de 2016

por Santana Castilho *

A análise das políticas propostas e a análise do discurso dos que comunicam em representação dos partidos permite estabelecer padrões previsíveis de comportamento político. Aí temos o PS, fazendo-se de virgem, a patentear, agora que se inicia o primeiro ano-lectivo sob sua inteira responsabilidade, o que fui antecipando e criticando, ainda a presente legislatura não tinha arrancado: a vacuidade de soluções para os verdadeiros problemas da Educação.

À míngua de preparação e de estudo dos problemas durante os últimos quatro anos em que foi Oposição, o PS recorreu ao baú dos adquiridos ideológicos de sempre para repetir os erros, que nunca reconheceu, dos últimos quatro anos em que foi Governo.

A 22 de Março de 2015, antes das eleições que viria a perder, no auditório do Museu de História Natural e da Ciência, após um debate sobre “qualificações”, António Costa anunciou que a educação de adultos, particularmente a recuperação do programa “Novas Oportunidades”, era uma das suas quatro prioridades para a Educação e um “dever de cidadania”. De novo em Março, agora de 2016, após um Conselho de Ministros dedicado à Educação, Tiago Rodrigues revelou que o rumo para a legislatura tinha, não quatro, mas cinco prioridades. Recordemo-las, como foram apresentadas: “orçamento participativo”, que consistirá em atribuir às escolas uma verba adicional para os estudantes gastarem como entenderem; “animação turística” das ruas das nossas cidades; “educação inclusiva”, metáfora para criar um grupo de trabalho que estudará a forma de juntar aos diplomas um descritivo do que os alunos fizeram em contexto extra-curricular; “sucesso escolar”, com o anúncio de um programa nacional de formação massiva de professores; e “formação de adultos”, recuperando, com rasgados elogios, as Novas Oportunidades, de má memória. A pavorosa semântica do ministro da Educação explicou-nos, na altura, o que seriam as novas “Novas Oportunidades”:

“Este programa deverá assentar numa maior integração das respostas na perspetiva de quem se dirige ao sistema, tornando, na ótica do formando, coerente e unificada a rede e o portefólio dos percursos formativos, que no percurso individual devem ser passíveis de combinação personalizada”. 

Entenderam? É tudo o que sabemos, para além de que pretendem começar com 50 milhões de euros.

A educação de adultos é importante? Obviamente que sim. Todas as iniciativas que visem a qualificação dos cidadãos são importantes. Mas será uma prioridade num país que não consegue matar a fome a todas as crianças do ensino obrigatório, que tem escolas sem dinheiro para pagar a electricidade que consomem, que exporta médicos, engenheiros e enfermeiros (só no Reino Unido estão 12.000), e que desperdiça no desemprego dezenas de milhares de licenciados, que custaram dezenas de milhares de milhões a serem formados?

Quanto ao programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar e ao seu primeiro ideólogo, José Verdasca, procuram atribuir às escolas e aos professores a culpa do insucesso dos alunos. Fazem-no por referência ao passado (a insidiosa “cultura de retenção”, que glosam recorrentemente) e voltam a fazê-lo quanto ao futuro, quando coube às escolas a responsabilidade de conceber planos de acção para um quadro conceptual que lhes foi imposto. Em recente entrevista ao Público, José Verdasca foi cristalino ao acusar os professores de não quererem mudar as práticas e ao afirmar que “a retenção não tem valor pedagógico e que um aluno que reprova provavelmente, no ano seguinte, terá níveis mais baixos de proficiência”. Sendo óbvio, dada a centralidade do plano na acção do Governo, que esta doutrina não é só de José Verdasca mas também do Governo, não seria menos pérfido e menos cobarde declararem por decreto o fim das reprovações?

Enquanto isto, a economia patenteia resultados miseráveis, completamente opostos aos prometidos pelo plano macroeconómico que António Costa sacralizou. As finanças estão ligadas ao suporte mínimo de vida do BCE. O colapso bancário é refém periclitante da generosidade da DBRS. A decisão do BCE sobre a CGD vexou Portugal e alguns cidadãos, arrastados num vórtice de vergonhosa incompetência e inaceitável desleixo. O investimento público de 2016 é inferior ao de 2015. O PIB cresceu um terço do previsto. A dívida pública aumentou. A “limpeza” de 120 dirigentes técnicos do IEFP passou de fininho, excepto para os 10 que recorreram aos tribunais. O caso Lacerda Machado, o melhor amigo de António Costa, que por isso mediou informalmente negócios de Estado, já lá vai. Outros três amigos, secretários de Estado protagonistas do escândalo Galp, foram aninhados no limbo do esquecimento a Carlos Martins, quinto amigo, secretário de Estado do Ambiente, com residência habitual em Cascais, que recebia um subsídio só devido a quem residisse a mais de 150 quilómetros de Lisboa.

Apesar de tudo isto, há quem bata palmas e eu não? Porquê? Porque, como diria Woody Allen, conheci o PS antes de ser virgem!

* Professor do ensino superior

10/08/2016

Nietzsche, a Galp e a consciência de alguns políticos

no Público
10/8/2016

por Santana Castilho *

Embora Nietzsche, filosoficamente, nos diga que não há factos, só interpretações, direi que há “não factos”, relativos às relações da Galp com Rocha Andrade e outros, que só admitem uma interpretação, a saber:
- A Galp patrocina a selecção de futebol porque isso lhe interessa comercialmente.
- As deferências corporativas (neste caso, da Galp) para com determinados protagonistas (neste caso secretários de Estado que podem decidir a favor ou a desfavor dos interesses da Galp) visam o estabelecimento subliminar de simpatia pelos interesses corporativos de quem convida.

- É inaceitável, ao nível do senso comum, que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais receba presentes de uma empresa que tem um conflito imoral, de mais de 100 milhões de euros, com o Estado português, porque se recusou a pagar impostos sobre lucros obtidos com rendas excessivas, no momento em que os portugueses eram cilindrados com taxas extraordinárias e todas as grandes empresas pagaram o que a Galp não pagou.

- A partir de 2010, o Código Penal estabelece prisão até cinco anos ou multa até 600 dias para os funcionários ou titulares de cargos políticos que aceitem “vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida”. Mas, à boa maneira do nosso legislador tipo, o artigo que assim dispõe foi convenientemente aparelhado com uma porta generosa, por onde cabem todas as interpretações politicamente adequadas à trupe e que assim reza: “Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”. São os decantados “usos e costumes” (que bem conhecemos), contemplados nesta excepção, que Rocha Andrade se aprestou a invocar. Ou não fora ele, para além de cobrador de impostos, escriba atento de prudentes códigos (foi co-autor do código ético para candidatos a deputados, que António Costa mandou elaborar antes das eleições que viria a “ganhar”, perdendo).

- Rocha Andrade, confrontado com as circunstâncias, abriu-nos a consciência em dois momentos eloquentes. Num primeiro acolheu-se à lei. Disse encarar “com naturalidade e dentro da adequação social” a aceitação da prebenda. Num segundo, zen, disse que ia devolver à Galp o que a Galp lhe deu. Obviamente, porque foi forçado a admitir o que começou por negar: o seu erro. Mas não ficaria por aqui a desgraça.

Quando o Ministério da Finanças veio, em socorro do seu naufragado secretário, defender que “não existe qualquer fundamento para falar em conflito ético” porque “as decisões concretas sobre os processos judiciais em causa não competem ao Governo, mas sim aos tribunais”, afogou o náufrago. Porque o argumento nos toma por tontos. Porque o Estado português é representado nos tribunais pela Autoridade Tributária, que é tutelada por Rocha Andrade. Porque a Autoridade Tributária pode fazer n coisas no processo, designadamente acordos extra-judiciais, interpretando como bom, com o beneplácito doutrinal de Nietzsche, qualquer acordo que os vulgares dos mortais não convidados pela Galp viessem a considerar como péssimo.

Quando Augusto Santos Silva disse que a intenção anunciada de ressarcir a Galp por parte dos secretários de Estado encerrava o caso e dissipava as dúvidas, espantou-me que a inteligência superior e a notável cultura política de Santos Silva lhe permitissem cometer tantos erros em tão curta frase. Porque o caso não se encerra por decisão do Governo. Porque não havia dúvidas, havia a certeza de que Rocha Andrade nunca poderia aceitar o que aceitou. Porque a devolução do indevidamente recebido é a aceitação da culpa e torna indiscutível o que já tinha uma estreitíssima margem de defesa. Porque se alguém admite que é preciso fixar em papel um código ético para governantes, a propósito de um incidente em que um secretário de Estado demonstra incapacidade para produzir um juízo ético simples (sublinho simples) o que é que nos está a dizer? Que os governantes não têm princípios éticos simples assimilados e que não devemos confiar neles. E foi isso que Augusto Santos Silva implicitamente disse, quando explicitamente defendeu uma conduta que implicitamente se propõe condenar lá para o fim do Verão. O Governo não encerrou o caso. Enterrou o protagonista. E diminuiu os políticos que se seguem, considerando que carecem de um manual para distinguirem velocidade de toucinho. Politicamente, seria difícil fazer pior.

Posto isto, retomo considerações que já aqui fiz. Antes de ser financeira e económica, a crise que nos assola, há anos, é política. E a natureza da crise política é ética, porque é a ética que molda as consciências dos que mandam. Se por um lado é gratificante verificar que são hoje mais facilmente escrutináveis os comportamentos dos que ocupam cargos públicos, é desolador concluir que muitas consciências políticas não se perturbam com o atropelo de regras e valores comuns e permanecem serenas quando protagonizam casos que insultam o entendimento geral sobre o que é o bem e sobre o que é o mal, desde que se possam refugiar em leis enviesadas que elas próprias conceberam.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)