31/10/2016

entrevista - Diário do Alentejo


Diário do Alentejo
28 outubro 2016

Texto: Paulo Barriga

SANTANA CASTILHO, pedagogo natural de Beja, regressa hoje (28/10) à sua cidade natal para uma conferência em torno da formação para a vida ativa. A iniciativa, que decorre (decorreu ...)  a partir das 10 horas no ginásio da Escola D.Manuel I, insere-se nas comemorações dos 25 anos da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja, e conta ainda com a presença do antigo ministro da Educação de Durão Barroso, David Justino. O “DA” publica em exclusivo uma entrevista com Santana Castilho onde se faz a revisão das principais matérias que afetam as políticas de ensino em Portugal e onde é evidenciada uma verdadeira “falta de reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino” por parte dos partidos políticos. 

"Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino."

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Há mais de 40 anos que anda na docência. Esta coisa de cada um que chega de novo mudar as regras do jogo do ensino e da educação em Portugal não o aborrece já um bocadinho? 
Aborrece muito e cansa ainda mais. Mas a questão que me anima nos momentos de desalento é saber que, não fora a luta de muitos, nos quais me incluo, e os resultados da atrevida ignorância de tantos políticos seria ainda pior.

Por vezes até passa para a opinião pública que cada novo ministério, ou ministro, acaba sempre por chegar com uma certa vontadezinha de deixar o seu próprio nome gravado na história da educação em Portugal... Partilha desta ideia? 
A simples constatação empírica mostra que a substituição do que se encontra por aquilo que se propõe despreza olimpicamente duas vertentes básicas de qualquer processo de mudança: avaliação séria e fundamentação sólida. Mas há quem chegue com a vaidade de ligar o nome, não importa a que reforma, e há quem chegue com o propósito de obedecer a quem manda, mesmo que nada entenda do que faz. O atual ministro ilustra bem esta postura. Safa-o a circunstância de os erros que comete serem, ainda assim, menos perniciosos para o sistema que as maldades concebidas pelo anterior governo PSD-CDS.

Santana Castilho também teve responsabilidades governativas. É assim tão difícil estabelecer uma linha de ação coerente e duradoura em termos educacionais? 
É difícil, efetivamente. E ocuparia todo o seu jornal a dizer-lhe porquê, no contexto da cultura política em que vivemos. Aos partidos políticos falta reflexão e produção doutrinária sobre os grandes problemas do sistema de ensino. Quando chega a hora, o exercício responsável do poder cede o passo à simples exibição de poder e o improviso substitui a sensatez que o conhecimento permite. Neste caldo cultural é impossível operar estabilidade e aceitação durável das políticas. A imposição ignorante não é conciliável senão com uma falsa ideia de democracia.

Já por várias vezes o li a defender a necessidade de um “pacto para a educação”. Está a falar do quê, em concreto?
A pedagogia é uma área da atividade humana que se serve de várias ciências. É fundamentalmente especulativa, mais caracterizada pela pluralidade de hipóteses que pela existência de certezas. Mas a produção científica existente permite fazer escolhas que se afigurem mais adequadas para o contexto do País. Fazer essas escolhas e acordar em as manter por todo um ciclo de formação dos jovens portugueses é uma utopia transformável em realidade quando mudarmos a forma de fazer política. É dessa mudança que falo.

Digamos que, numa área onde os interesses são tão diversos e as opiniões, por vezes, tão antagónicas, não será nada fácil estabelecer esse “pacto”. Aliás, o próprio Santana Castilho referiu, não há muito, que o atual ministro da Educação chegou ao cargo, e cito, “sem uma linha conhecida ou ideia” sobre o assunto. 
Reconheçamos que, desta forma, não há pacto de regime que possa resistir... Entendo o exercício político como serviço público, o que quer dizer que, nessa sede, os interesses particulares caem sempre face aos interesses coletivos. Um político que assim actue precisa de uma formação ética inabalável, a par de um conhecimento superior relativamente à área que dirige. Enquanto a cultura organizacional dos partidos políticos for ditada por carreiristas e oportunistas, que desprezam estes valores, tem razão: não será fácil realizar a minha utopia.

Já agora, o que pretendeu dizer quando escreveu que tinha conhecido o PS antes de ser virgem? 
Foi uma metáfora alusiva à recorrente falta de pudor do atual PS, que se esquece do que o anterior PS fez. Que assobia para o lado e ignora, sem ética e sem delas se ter demarcado, as malfeitorias de Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues. Conta-se que, no início da década de 1970, Doris Day terá feito um discurso no fim de um jantar de homenagem. Todos os americanos, de smoking, se levantaram para aplaudir, excepto Groucho Marx. Interpelado por tal grosseria, terá respondido: “I’m so old that I knew her before she was a virgin”.

Santana Castilho é das vozes mais críticas e mais longevas sobre a educação em Portugal. Esta sua ousadia permanente tem-lhe trazido alguns dissabores ao longo da sua vida? 
Muitos. Mas são as alegrias, que também são algumas, particularmente o reconhecimento dos meus alunos e de muitos colegas que prezo, que me dão o propósito firme de persistir.

Como é que olha para o ensino em Portugal hoje em dia, nomeadamente para esta nova proposta através da qual se pretende saber quais as matérias que são verdadeiramente essenciais constarem dos currículos? 
Jugo que a síntese está feita nas respostas anteriores e a situação a que se refere é um exemplo do que caracterizei como atuação dominante.
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"A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as Potencialidades de cada criança."


Não saímos, então, da tal guerra entre a “cultura universal” e a “cultura utilitarista”? 
Hoje, a preponderância da visão utilitarista e imediatista na Educação é um facto. Assim reclamam os interesses económicos, em cuja teia vão caindo as próprias famílias. A sociedade esquece-se de que o papel da Educação é transformar o mais possível em acto as potencialidades de cada criança. E essas potencialidades têm, muitas vezes, relação com interesses e capacidades distintas do que dá lucro imediato.

Qual a sua opinião em relação à distribuição gratuita dos manuais escolares do primeiro ciclo, com necessidade de devolução incólume no final do ano letivo? 
O Governo decidiu sem avaliar as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares. Decidiu sem considerar o impacto numa indústria que move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a duas mil pessoas e interessa a 1 600 livrarias. Trata-se de uma iniciativa populista, que agrada ao mainstream mas que abalroa, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros. Dito isto, não ignoro a necessidade de uma melhor regulação da atividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio e praticam preços injustificáveis. Era isso que o Governo devia ter feito e não meter-se na trapalhada que sintetizo nas seguintes questões: Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei n.º 47/2006? Que ponderação fez sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório, que é de 12 anos e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?

Bom, é uma lista interminável de questões que se levanta de uma única… Santana Castilho está em Beja, a sua terra natal, a convite da Associação dos Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial de Beja. Que memórias guarda dos tempos em que por cá estudou? 
Já viu como vai longa esta entrevista? Julga que tem jornal para acomodar a emoção que verteria para o seu papel, se desatasse a responder-lhe? Fiquemos por aqui e com a certeza de que aí passei os melhores anos da minha vida, graças aos pais que tive, aos professores que me ensinaram e à gente de uma terra que trago sempre no coração.

Hoje em dia, quer a antiga Escola Industrial, quer o antigo Liceu foram transformados em mega-agrupamentos. Concorda com esta política de concentração? 
Não! Houvera um Código Pedagógico com a força legal do Código Penal e só a inimputabilidade cognitiva acerca das necessidades das crianças impediria muitos de cumprirem pesadas penas.

Conhecendo como conheceu os meios rurais, como assistiu ao encerramento de centenas de escolas primárias em pequenas aldeias do Alentejo e de todo o interior do País? 
Como instrumento pérfido de, em nome de um falso modernismo, condenar o interior à desertificação sem apelo.

Foi presidente do Politécnico de Setúbal. Que futuro prevê para estas instituições? 
As instituições a que se refere estão em crise. Terão futuro quando as políticas visarem o desenvolvimento do interior e as instituições preencherem o espaço para que foram concebidas.

Faz sentido coexistirem em Portugal dois níveis diferentes de ensino superior? 
Faz, se racionalizarmos a rede de oferta do ensino superior e substituirmos a lógica da competição pela lógica da cooperação.

Ou os politécnicos estão condenados a serem as futuras escolas profissionais do sistema de ensino?
Não penso que tal venha a acontecer, embora a tentação de garantir fontes de financiamento o indicie e o preconceito de muitos contra o ensino superior politécnico o deseje.
 recebido via e-mail 

19/10/2016

Manuais escolares: o populismo decide, a sensatez paga

no Público
19 de Outubro de 2016

por Santana Castilho*

O Governo escreveu e os jornais repetiram: a despesa com a Educação sobe 3,1% em 2017. Mas, não é assim. O que o Governo acaba de apresentar é o que estima vir a gastar em 2017, que comparou com o que previu gastar em 2016. Ora o Governo sabe que vai fechar as contas de 2016 com uma despesa bem superior à que estimou. Termos em que, com o que já se conhece, a afirmação é falsa.

Apesar deste expediente e dos artifícios que recheiam o OE 2017, fica desde já claro que prefiro a lógica que o informa à lógica dos que o antecederam. Posto isto, permitam-me que formule a pergunta de partida para abordar um desses artifícios: quais são as consequências da imposição de um modelo de gratuidade e reutilização dos manuais escolares? Como se pretende abordar uma indústria que, estima-se, move anualmente 100 milhões de euros, dá emprego a 2.000 pessoas e interessa a 1.600 livrarias? Poderemos ter, numa primeira fase, sob um pretexto político discutível mas que é bem acolhido pelo mainstream, uma iniciativa que poderá destruir, numa segunda fase, uma cultura que demorou décadas a desenvolver-se? Tratar-se-á de uma actuação movida por simples preconceito, que acaba abalroando, de modo centralista, interesses de editores, de autores e dos que trabalham na indústria da produção de livros?

Um parecer de Gomes Canotilho e Jónatas Machado e uma entrevista de Alexandra Leitão deram respostas opostas. Mas enquanto o parecer (ainda que pago pelos editores e apesar de eu nunca ter visto um só que não dê razão a quem o encomendou) é sólido e fundamentado, na entrevista a essência do problema é escamoteada por afirmações gongóricas, de pendor totalitário. No parecer sublinha-se a necessidade de ponderar a gratuidade com o efeito adverso numa indústria livreira livre e democrática. Na entrevista, Alexandra Leitão apoda o parecer de “juridiquês”. No parecer relaciona-se, com exemplos, a posse plena do livro escolar com os resultados superiores obtidos nos programas internacionais de avaliação de resultados. Na entrevista, Alexandra Leitão limita-se a sentenciar de cátedra: “ser contra a reutilização é passar um atestado de diminuição ao povo português”.

Nada do que fica dito branqueia a necessidade de uma melhor regulação da actividade das editoras escolares, que funcionam em oligopólio, que praticam preços injustificáveis face a uma oferta e uma procura antecipadamente conhecidas, onerando desproporcionalmente os orçamentos familiares. Outrossim, põe em relevo o que devia ter sido feito, se o Governo respondesse às perguntas que vai deixar sem resposta. Como vai gerir administrativamente milhões de processos de empréstimo, designadamente executar o recebimento das indemnizações pelos manuais que sejam devolvidos em mau estado, ou não sejam devolvidos? Por que estranho critério excluiu liminarmente do processo os alunos do ensino privado? Por que nada fez para conferir eficácia ao regime de certificação dos manuais escolares, previsto na Lei nº 47/2006? Por que razão não esperou pelas conclusões do grupo de trabalho que nomeou para estudar o problema? Que tem o Governo a dizer sobre a autonomia das escolas e o correlato poder de livre escolha dos manuais, agora fortemente condicionado? Que ponderação foi feita sobre as consequências de uma caixa de Pandora, que se abre num cenário de ensino obrigatório que muitos parecem ter esquecido ser de 12 anos, doze, e não apenas de ensino básico? Como irá lidar o Governo com a incoerência que resulta de impor a reutilização ao mesmo tempo que anuncia a alteração de programas, que vão já no próximo ano tornar obsoletos manuais a meio do ciclo de validade legal?

Eu sei que os populistas costumam decidir antes de reflectir e ouvir. Mas sempre custa ver a sensatez a pagar a factura.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

05/10/2016

Os diferentes tratamentos da realidade


por Santana Castilho *

Os diferentes tratamentos da realidade

Vieram a público dois importantes relatórios sobre Educação. Já me referi ao primeiro, Education at a Glance 2016, da OCDE. Importa hoje abordar o segundo, Estado da Educação 2015, do Conselho Nacional de Educação. São 300 páginas, que radiografam a educação nacional, compilando dados de fontes diversas. Eis a síntese que me parece útil, em números, comprimida para o espaço de que disponho: a população portuguesa decresce desde 2010 (somos 10.358.076, mas éramos mais 215.024 em 2010); 14,2% são jovens, 20,5% são idosos, 52,6% são mulheres e 47,4% homens; a população activa diminuiu 5,5% na última década; o saldo natural (os que nascem menos os que morrem) é negativo, desde 2009; o saldo migratório (os que chegam menos os que partem) é, também, negativo, desde 2011; embora 2015 registe um ligeiro aumento de nascimentos, prevê-se que, nos próximos 5 anos, a diminuição das inscrições no 1º ano do ensino básico duplique por referência à verificada nos últimos 10 e só a partir de 2022 se comece a inverter a tendência.

A taxa de abandono precoce da educação (13,7%) está, felizmente, em queda; as taxas de conclusão do ensino básico e dos cursos do ensino secundário aumentaram; verificou-se nos últimos 10 anos um forte crescimento dos níveis de escolaridade da população activa (+ 58,5% relativamente ao ensino secundário e + 66,8% no que toca ao superior); no mesmo período, o ensino público não superior perdeu 73.572 alunos, enquanto o privado ganhou 18.912; nos últimos quatro anos, diminuiu significativamente o número de técnicos de educação especial, embora tenha aumentado o número de alunos dessa área; a relação psicólogos/alunos, no ensino público, é 1/1.270; na última década, o sistema de ensino perdeu 40.159 docentes e a despesa pública em percentagem do PIB reduziu 15% para o 1º ciclo do ensino básico e 8,3% para os outros dois ciclos e para o secundário.

Fora outro o autor desta curta síntese e os números retirados de tantos quadros e gráficos seriam diferentes. Sejam quais forem, mais importante que mostrar é interpretar, relacionar e explicar.

Quando falamos de recursos públicos, a prestação de contas é um conceito que colhe ampla aceitação no seio de qualquer sociedade democrática. Mas a tendência actual para tudo medir e tudo reduzir a números, seja qual for a natureza e a complexidade dos fenómenos em causa, vem-nos mergulhando numa cultura comunicacional de pendor estatístico e econométrico que, amiúde, não serve a verdade de que a democracia carece, porque cada arauto manipula os dados até identificar a realidade com os seus interesses.

Sobre um fenómeno, estatisticamente tratado, não existe, normalmente, uma só leitura. Existem leituras (e sublinho o plural), com pontos fortes e fracos, segundo a perspectiva de análise, as fontes usadas e os processos de construção dos indicadores. Disto mesmo encontramos abundantes exemplos na Introdução ao Estado da Educação 2015. Sobre o bullying, diz-se que “é cada vez maior a percentagem de alunos que afirma nunca terem sido vítimas de bullying” e diz-se, também, que Portugal pertence aos “países da OCDE onde essa prática concita maior número de queixas”. Sobre o grau de satisfação dos alunos com a escola, afirma-se que os alunos portugueses são dos que se sentem mais felizes. Mas, noutro quadro, só 12% dizem gostar muito da escola. E o perfil de felicidade referido contradiz, claramente, a opinião dos directores sobre o mesmo tema.

Se mudarmos de campo e passarmos para a discussão política dos últimos dias, sobre a evolução da economia e das finanças públicas, vemos o Governo a entoar hosanas à execução orçamental apurada no fim de Agosto (o défice fixou-se em menos 81 milhões quando comparado com Agosto de 2015). Mas se olharmos para o processo que nos trouxe a este défice melhorado, que vemos? Que até ao fim de Agosto o Estado cobrou em receitas (impostos, basicamente) 49,2 mil milhões de euros (mais 622 milhões relativamente a Agosto de 2015) e gastou 53,8 mil milhões (mais 541 milhões relativamente a Agosto de 2015). Assim, o défice das contas públicas, que em Agosto de 2016 se fixou em 4,6 mil milhões, melhorou em termos homólogos porque a carga fiscal aumentou, independentemente de qualquer juízo de valor sobre a natureza dos impostos que subiram e sobre a mudança de critérios para distribuir a riqueza.

O problema da nossa política é a incapacidade persistente em tomar como dialogantes as perspectivas diferentes, de modo a gerar entendimentos mínimos sobre o que é essencial. E assim vivemos, seja na Educação, seja na Economia, em ciclos de mudanças políticas que primam pela lógica primária de substituir o que se encontra pelo seu oposto, com a promessa recorrente de amanhãs que cantarão e a estratégia gasta de transformar a realidade no interesse partidário.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)