22/02/2017

E do baú dos sempre-em-pé saiu o homem novo!

no Público
22 de Fevereiro de 2017

por Santana Castilho*

Quando vi a cena de apresentação pública do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, lembrei-me do primeiro-ministro mais divertido da época democrática, de sua graça Pinheiro de Azevedo, e da resposta vernácula que deu a propósito do sequestro de que foi vítima. Não a escrevo, por decoro. Recordando-a, contenho-me para não a soletrar como contributo único que o perfil merece, em sede da discussão pública que ora decorre. Pinheiro de Azevedo imaginava-se, então, rodeado de gonçalvistas. Eu sinto-me sequestrado por pedabobos que querem redesenhar a realidade. Falo para si, secretário de Estado João Costa, que o seu ministro limitou-se a saltar para o estribo do comboio em movimento.
A questão não é o perfil de saída dos alunos. É o seu perfil de entrada. São todos os problemas trazidos para o interior da escola, cuja solução não lhe cabe, muito menos sem meios nem autonomia. Fixe o que lhe digo. Se por parte dos professores se verificar uma adesão acrítica à sua modernidade bacoca e ao seu piroso homem novo, não exulte. Preocupe-se. Significará isso que a classe atingiu o auge da desistência. Ou da resignação. Escolha a palavra.
Disse o senhor que o novo perfil do aluno é um documento que faltava para dar conteúdo ao alargamento da escolaridade obrigatória. Errou. Bem ou mal, concorde ou discorde, goste ou não goste, o que dá conteúdo ao prolongamento é o plano de estudos vigente e os programas e correspondentes conteúdos disciplinares das diferentes áreas que o compõem. O referencial de competências que agora sintetizou não vai além da reposição de conceitos banais, de aceitação pacífica, há muito presentes na cartilha geral de qualquer professor. É uma apropriação, mal disfarçada, de máximas expressas em publicações não citadas (vide, por todas, The National Curriculum in England. Key Stages 1 and 2. Framework Document. Department for Education. September, 2013) e em duas publicações, uma da EU (Key Competences for Lifelong Learning – A European Reference Framework), e outra da OCDE (Future of Education and Skills: Education 2030) mal aludidas num texto presunçoso, sem um parágrafo sequer de referências bibliográficas. Definindo um perfil de chegada, permitirá, se permitir, aferir se o plano de estudos e os conteúdos disciplinares contribuem ou não para ele. Mas não confere, coisa nenhuma, qualquer conteúdo ao prolongamento da escolaridade. Não confunda velocidade com toucinho, senhor secretário de Estado.
Disse o senhor, depreciando-o, que o último prolongamento da escolaridade obrigatória foi um acto administrativo. Voltou a errar. Um secretário de Estado não pode abrir a boca e dizer o que os pés pensam. Esse prolongamento não foi uma iniciativa do chefe da repartição de finanças do seu bairro. Foi uma lei da Assembleia da República (Lei nº85/2009), aprovada com os votos favoráveis do PS, PCP, BE e PEV e a abstenção do PSD e do CDS/PP. A isso chama-se um acto político. No Diário da República, aquilo a que chamou acto administrativo não está assinado por um trio de amanuenses. Está assinado pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República e pelo Primeiro-Ministro.
Perguntou o senhor, publicamente: “Será mesmo compatível com o desenvolvimento científico-tecnológico dos últimos anos termos uma Europa com refugiados a morrer às suas portas ou uma população estudantil no seio da qual observamos um aumento da violência no namoro?” Respondo-lhe com duas perguntas: que tem isso a ver com o seu pomposo Perfil do Aluno para o Século XXI? Crê que a partir dele cada adolescente português vai partilhar haveres com dois sírios e um iraquiano e enviar rosas diárias à namorada?
O secretário de Estado João Costa louva as suas “aprendizagens essenciais” ao mesmo tempo que critica as “disciplinas estruturantes” de Nuno Crato. Afirmações suas, justapostas a afirmações do seu patusco ministro, tornam a coisa cómica. Disse o primeiro que o perfil faz parte de um puzzle, de que as aprendizagens essenciais são peça fundamental. Disse o segundo que acabaram os saberes essenciais. Digo eu: em que ficamos, meus senhores?
O documento está agora em consulta pública. Para quê, senhor secretário de Estado? O óbvio não tem discussão. Se escrever um papel a dizer que os políticos não devem roubar e que as mulheres não podem ser violadas, acha que alguém decente vai discordar? Se se tratasse de saber como conseguir tais desideratos, então sim, talvez pudéssemos dar achegas. Mas nesse quadro, como é hábito nas consultas públicas, as decisões estão tomadas. O senhor já disse onde vai actuar e já anunciou que a legislação está quase pronta.
Resumindo, senhor secretário de Estado, do baú dos sempre-em-pé saiu um eloquente de múltiplos saberes, Guilherme de Oliveira Martins, para coordenar 11 sábios e três consultores extra. Esse comité de notáveis demorou seis meses para parir um papel que, expeditamente, um par de horas de copy/paste bem dirigido faria. Não deixa de ser curioso que a prosa, holofote futurista com implícita menorização do passado, tenha ido colher âncora a um pensador que tem hoje 96 anos e tomado por referência sete postulados de uma obra que o mesmo escreveu há 17. Com humildade marota, o senhor transformou a coisa em referencial moderníssimo, que salvará o futuro. Com essa humildade, reflicta no que lhe vou dizer.
Ainda o senhor era imberbe e já os professores mais velhos tinham passado por múltiplos programas e conteúdos, objectivos gerais e específicos, unidades didácticas, pedagógicas ou lectivas, conforme a moda, pedagogia por objectivos e objectivos sem pedagogia, ensino centrado no aluno nas semanas pares e nos professores nas ímpares. Quando aquilo a que chama “currículo flexível” se chamou “gestão flexível do currículo”, já lá vão 18 anos, assistiram a estratégias cirúrgicas de remoção de obstáculos para que a rapaziada passasse toda. Mais recentemente resistiram às “competências básicas” doutros operacionais da sua turma e à paranoia dos milhares de metas de Nuno Crato. Depois disso tudo, estão treinados para aguentar as espertezas e os ziguezagues da geringonça educativa e, agora, os seus “perfis de competências”. Genericamente até me parece que se têm deixado embalar pelo seu discurso redondinho. Mas olhe que estão “congelados”, em salários e carreiras, há uma década e as suas pós-modernices não derrogam o aforismo popular: honrarias sem comedorias são gaita que não assobia.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

08/02/2017

A pós-verdade do grande negociador?

no Público
8 de Fevereiro de 2017

por Santana Castilho*

Se o problema fosse escolher um par, preferia Costa e Tiago a Passos e Crato. Se a questão se resumisse ao mal menor, este Governo ganhava. Mas se sairmos do preto e branco e nos libertarmos do quadro maniqueísta que por aí tem dificultado o reconhecimento do óbvio, porque o Governo é de esquerda, a conclusão é evidente: o importante não se fez e no mais são os erros que dão o tom.

Sobre esse problema primeiro e maior que é a indisciplina na Escola (de que todos evitam falar para não se exporem ao julgamento sumário das redes sociais e ao risco da má imagem mediática), sobre os alunos que chegam à Escola sem a educação mínima que os pais não puderam ou não souberam dar-lhes, a resposta foi a demagogia dos tutores, que já existiam, mas que agora atendem dez com os meios que antes tinham para quatro.

Sobre a monstruosidade dos megas agrupamentos e a falácia da autonomia das escolas, tudo como dantes enquanto avança, de modo sub-reptício e com coniventes silêncios, a municipalização da educação, que há pouco se combatia porque vinha da direita e agora se deixa passar, porque sopra da esquerda.

E o discurso poderia continuar neste registo dicotómico, mostrando como a intervenção avulsa preenche o vazio deixado pela falta de conhecimento para definir políticas certas. Tomemos por ora o epílogo de dois meses de negociações sobre o concurso extraordinário de vinculação de professores, que poderá ter, definitivamente, retirado a Tiago Brandão Rodrigues a protecção conveniente da Fenprof.

Foi claro o desrespeito do ministério face aos parceiros negociais, ao aprovar um texto que nem sequer lhes deu a conhecer. À manifesta deselegância do procedimento somou-se a falta de ética negocial, que admitiu a concurso, no diploma final, docentes oriundos do ensino privado, em circunstâncias que não foram consideradas antes. E às questões de carácter, melhor, de ausência dele, acrescem questões substantivas de justiça, melhor, de ausência dela. O que estava em causa era um concurso extraordinário (sublinhe-se extraordinário), através do qual um patrão, no caso o Estado, iria corrigir um determinado número de casos de contratação precária, ilegal e abusiva, que provocou ao longo de décadas, por não aplicar a si, Estado, aquilo que aprovou para os outros. O que estava em causa era um procedimento extraordinário para regularizar algumas situações, que não todas, como deviam ser num Estado de direito, que feriam o Código de Trabalho e as leis europeias. Os alvos do procedimento eram vítimas do patrão, o Estado, abusadas de modo continuado ao longo de muitos anos. Não estávamos face a um concurso ab initio, ao qual, como a Constituição determina, poderiam ser opositores, em igualdade de circunstâncias, todos os cidadãos. Ao fazer o que fez, e ao falar de equidade e justiça, quando anunciou a borrada, Tiago Brandão Rodrigues tomou por obra-prima a prima do mestre d’obras: violou preceitos básicos do Código de Trabalho, atirou para o desemprego professores da rede pública, que substituiu por professores da rede privada, safou de indemnizações, por eventuais despedimentos, os patrões dos colégios contra os quais a sua padeira de Aljubarrota espadeirou no ano transacto e marcou com mais lama a aplicação da “norma-travão” da próxima lotaria.

Tiago não se enxergou ou fez o que o grande negociador lhe mandou, como operacional disciplinado que é? Sim, porque as compensações com que António Costa acenou aos privados, na Assembleia da República, aquando da retirada do financiamento aos contratos de associação, podem ter chegado agora, como pós-verdade de trocas palacianas. Na mesma onda em que o conserto apressado da trapalhada da TSU deixou a suspeita de haver mais, traficado nos bastidores, que o simples convite à fraude contabilística (para dissipar lucros e fugir aos impostos) oferecido com o fim do PEC.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)